A tradição da goiabada cascão no tacho de cobre

A goiabada cascão é um doce “de corte”, em barra, de produção artesanal, feito com goiaba e açúcar em tachos de cobre e fogo à lenha, típico das regiões mais ao sul de Minas Gerais.

A goiabada cascão é produzida com a goiaba, fruto da goiabeira, árvore da espécie Psidium guajava, da família Myrtaceae, nativa da América Tropical.

Existem inúmeras variedades da fruta, que podem ser divididas entre “brancas”, com a casca esverdeada e interior amarelo-esverdeado pálido, e “vermelhas”, de casca amarelada e interior rosado.

As variedades nativas, que crescem espontaneamente em diversas áreas do Brasil e da América Tropical, possuem sabor mais rústico e mais acentuado, tamanho pequeno e irregular, casca rugosa, sementes pequenas e bem duras.

Modo de preparo

As goiabas são colhidas no final do verão, geralmente bem cedo pela manhã, para garantir a frescura do fruto e evitar o sol quente. São lavadas e processadas manualmente para separar o miolo com as sementes e retirar pequenos defeitos. As cascas mais perfeitas e vigorosas são selecionadas e mantidas à parte, enquanto o restante passa uma peneira para retirar as sementes e conservar o “miolo”. Esta massa é então levada ao fogo brando nos tradicionais tachos de cobre para cozinhar com açúcar, e mexida sem parar com uma pá de madeira.

A casca reservada é então adicionada ao tacho e depois de cerca de duas horas de cozimento, o doce começa a fervilhar e a “saltar” (respingar). Este é o momento quando se deve “bater” o doce, a fim de conseguir a consistência do “ponto de corte”.

É comum cada doceiro conservar um segredo de família sobre como acertar a hora do “ponto” do doce.

Ao final do processo, o doce é despejado em caixas de madeira com tampas de correr, que podem comportar até 30 quilos de doce, forradas com folhas de bananeira. Também são utilizadas latas de metal ou, simplesmente, embalagens de plástico. A goiabada pode ser conservada e consumida durante todo o ano.

História

Nativa da América tropical, a goiabeira é uma árvore presente na paisagem de grande parte do Brasil. A goiaba é uma fruta muito popular, utilizada como alimento desde a pré-história. Os colonizadores portugueses levaram mudas para a Europa e, hoje, a goiabeira pode ser encontrada até mesmo na Índia. Como suas pequenas sementes tornam seu consumo um pouco difícil, a goiaba é muito usada para fabricação de derivados como geleias, cremes e doces.

A safra de goiabas acontece no final do verão, nas últimas chuvas da estação. Nas fazendas mineiras, o dia de fazer goiabada era diferente de todos os outros. Por ser uma fruta de safra curta, a goiabada fabricada precisava durar o ano todo. Reunia-se toda a família, além de ajudantes de fora, em volta de um enorme tacho de cobre. Composto de goiaba e açúcar, a goiabada era mexida com uma pá de madeira durante todo o dia. Ao final do processo, o doce era despejado em caixas de madeira com tampa de correr. O aroma preenchia a casa inteira e muitas pessoas criadas em fazendas de Minas associam esse cheiro à própria infância. Não por coincidência, um livro de entrevistas do escritor Gabriel García Marques se chama “Cheiro de Goiaba”, já que a fruta também é muito popular em sua Colômbia natal.

Caixas e pás de madeira

Os caixotes utilizados para armazenar e dar a forma ao doce, geralmente em madeira de cedro e com tampa de correr, podiam conter até 30 quilos de goiabada, e eram forrados de palha de bananeira, mas o celofane foi incorporado para atender exigências de armazenamento, fiscalização sanitária e comercialização.

Além dos caixotes de madeira, outros instrumentos e utensílios tradicionais estão ligados à produção da goiabada cascão e, juntos com as formas históricas de produção deste doce, sofrem processos de mudança e substituição por razões externas e adaptações internas.

Entre eles, as peneiras para separação das sementes. Antigamente feitas de taquara, planta nativa da região, foram recentemente substituídas por peneiras de cobre ou outro material, devido a dificuldade de encontrar as plantas em alguns períodos do ano e pela falta de pessoas que ainda sabem construir estas peneiras.

As pás de madeira, em formatos grandes e pequenos, com forma específica de remo, também são instrumentos importantes na feitura do doce, conservados com cura pelos seus proprietários e, muitas vezes, passados de geração em geração. Também são alvo de restrições sanitárias pelos órgãos de fiscalização.

Tacho de cobre

Os tachos de cobre são considerados de extrema importância para a produção da goiabada, pois somente este metal garante a difusão ideal do calor que permite chegar ao “ponto” correto do doce e mantém a cor viva e brilhante tradicionalmente associada ao produto. Este material é considerado um risco à saúde pelas normas sanitárias vigentes, por mais que a sabedoria e tradição dos doceiros inclui práticas rigorosas e atentas de manutenção e limpeza destes instrumentos.

As fornalhas típicas, sob as quais se adaptam os largos tachos, são construídas em tijolos em forma circular e com uma aberta posterior por onde se alimenta o fogo com a lenha. Este fornos e fogões fazem parte do mobiliário doméstico e da memória afetiva destas comunidades.

Produção artesanal ameaçada

Com o processo de industrialização alimentar e o intenso êxodo rural que viveu o Brasil na segunda metade do século XX, a goiabada cascão foi aos poucos perdendo espaço na mesa do brasileiro. Em um samba de Nei Lopes e Wilson Moreira, imortalizado na voz de Beth Carvalho, a goiabada cascão é sinônimo de coisa rara, difícil de achar e boa. O refrão ajuda a entender não só sua importância histórica, mas também seu processo de extinção.
“Goiabada cascão em caixa / é coisa linda, Sinhá / que ninguém mais acha.”

A goiabada cascão artesanal ainda pode ser encontrado em mercados e feiras, mas é cada vez mais raro, sendo comum ao invés, a comercialização de versões industrializadas.

Está em perigo de desaparecer porque a produção artesanal demanda muita mão de obra para a limpeza, seleção das goiabas e para a mexida do tacho. A não renovação dos goiabais fez com que vários produtores passassem a usar as variedades “melhoradas”, híbridos produzidos para com o intuito de garantir características visuais homogêneas e maior resistência à pragas, porém em detrimento do sabor. O preço de mercado é baixo, balizado pelo produto industrial cada vez mais difuso. A desvalorização do produto fez com que os jovens se desinteressassem pela produção, uma vez que não se enxergam perspectivas na profissão de doceiro.

Questões fiscais e de vigilância sanitária complicaram o transporte do produto para outras regiões e exigem adaptações dos modos tradicionais de produção, sobretudo em relação ao uso da colher de pau, do tacho de cobre e da caixeta de madeira para guardar o doce.

Fonte: SlowFood Brasil

Jeferson Jess

Fundador da Caixa Colonial, um clube de produtos regionais e artesanais por assinatura que valoriza o pequeno produtor local

2 comentários
  1. Que delícia. O cheiro, os respingos do doce perto do ponto. Quando já frio encima de uma fatia de queijo mineiro. Quanta saudade dos meus avós italianos ao lado do tacho no fogão à lenha.
    Era eu que subia na goiabeira para chacoalhar e recolher as maduras do chão.

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